14 dezembro 2015

(2015) Oneohtrix Point Never - Garden of Delete



Num álbum tão grandioso quanto seu acrônimo, Daniel Lopatin mistura todos seus estilos anteriores e cria um magnum opus impressionante.


Daniel Lopatin, nome real do artista por trás do projeto Oneohtrix Point Never (nunca me cansarei desse nome. Soa como uma rádio numa história de Douglas Adams), agora se estabeleceu oficialmente como um grande artista na cena eletrônica. Pra mim isso já havia ocorrido com Replica, de 2011, um álbum que realmente soou como algo que eu nunca tinha ouvido antes - infelizmente, evento que não ocorre com a frequência que eu desejaria. Mas quando digo “oficialmente”, quero dizer inegavelmente. Não vejo como Daniel possa passar despercebido e não ser considerado de agora em diante como um dos mais influentes artistas eletrônicos da década. Daniel está definindo a eletrônica dos anos 10 assim como Richard David James definiu a dos anos 90.

Entendo, até certo ponto, como o público de Replica possa ter sido limitado. Era um álbum que fazia uso pesadíssimo de sampling em diversas faixas, se tornando também um trabalho de plunderphonics (outro nome que amo muito. Soa como um grupo de saqueadores numa história cyberpunk distópica muito estilizada). Esses samples não eram pedaços de músicas pop, referências a artistas ainda frescos na memória, ou diálogos de filmes famosos - como diversos artistas nesse gênero utilizam a ferramenta -, mas minúsculos excertos de informenciais dos anos 80. Eram cortados, repetidos, revertidos e abusados ao extremo para criar um som muito peculiar; no instrumental, bizarrices como sons de passos remixados e usados como batida. Isso sem contar as tracks ambientes: um som denso, mas uma atmosfera tão gélida e vazia. Tudo isso me fez considerar Replica um trabalho quase perfeito, mas esses mesmos elementos acabaram espantando muitos ouvintes que não apreciam tanto experimentalismo.

Contudo, em Garden of Delete, com um acrônimo que se encaixa perfeitamente: GOD, acredito que o gênio de Wayland, Massachusetts, dosou perfeitamente as influências pop e instrumentação mais convencional com o avant-garde e experimental, e ainda por cima avançando no caminho da variedade e intensidade.

Em GOD, todos os estilos com os quais Oneohtrix Point Never já brincou antes se misturam de maneira sublime e perfeita. Desde o noise fascinante de Returnal, ao uso de sampling de Replica, à instrumentação abstrata e ambientação de outro mundo de R Plus 7, tudo, você encontra aqui. Eu senti falta um pouco das partes mais ambientes de Replica, mas nada que prejudique a experiência.

Assim como a arte desse álbum, uma edição abstrata com uma screenshot de um jogo de RPG de 1982, as músicas aqui são como um reinventamento de toda a cultura humana nas últimas três ou quatro décadas. Riffs pesados de guitarra emergem em meio a uma chuva de bleeps, kicks e vocais digitalizados sem significado, só para então sumirem em menos de um segundo. Cordas de violão dedilhadas dão luz a instrumentação eletrônica e depois viram um chiado ambiente. Pianos grandiosos vão aumentando a tensão rumo a um clímax transcendental para de repente pausar com um bleep de telefone e um sample de música pop distorcida que eventualmente começa a pular, como num CD defeituoso. Fragmentos etéreos de todo nosso áudio já criado.

Essa experimentação e abuso de glitches que descrevi podem pintar a imagem (ou som, no caso) de um álbum imensamente abstrato e sem rumo. Mas não é o caso. Surpreendentemente, muitas músicas aqui são viciantes, memoráveis e com um ritmo quase radio friendly, pelo menos em comparação com os trabalhos anteriores de OPN. No Good, por exemplo, se não fosse pelos buzzes imensos que aparecem da metade pra frente, seria um single e tanto, uma linda viagem pelas planícies do eletrônico downtempo.

Aparentemente, GOD é também uma espécie de álbum conceito, mas é difícil saber do que exatamente se trata. Um estranho "anúncio" do álbum rolou no site oficial de OPN, com uma críptica carta em pdf aos fãs, uma tipo de introdução e FAQ feito do ponto de vista de um(a) alien chamado(a) Ezra, com citações a uma banda fictícia de “hypergrunge” chamada Kaoss Edge como inspiração para o álbum. Seria Lopatin brincando com os fãs, simplesmente falando abobrinha para ver que interpretações banais concluímos disso? Não faço ideia...

O mais interessante, no entanto, é como a música em GOD contrasta com essa vaga narrativa. Os glitches nas batidas, os vocais femininos distorcidos, os instrumentais de diversos gêneros aparecendo esporadicamente, soam como Ezra explorando nossa cultura num futuro distante, onde a humanidade já se extinguiu e tudo o que resta são vestígios quebradiços e voláteis de nossas criações digitais, estocadas em HDDs precários num planeta desertificado, somente funcionando devido a esforços de Ezra.

Todas as emoções humanas parecem estar presentes aqui, mas nunca de maneira completa. Apenas em pedaços. Retratos artificiais de momentos passados, reproduzidos com tanta energia que parecem imitar perfeitamente os sentimentos, ou pelo menos o mais próximo disso que Ezra vá experienciar vindo dos humanos.

E é nessa variedade quase randômica que Garden of Delete mais brilha. Em Sticky Drama, temos uma batida forte e brilhosa junto de vocais femininos distorcidos e ininteligíveis que se complementam para criar uma sensação de êxtase grandiosa mas ao mesmo tempo com uma tênue sugestão de... dor? Solidão...? Talvez anseio, como se tal felicidade fosse artificial e procurássemos toda eternidade por algo mais sólido, sem sucesso. Nunca algo tão abstrato fez emergir emoções tão concretas. E ainda nessa mesma música mergulhamos num breakcore insano, cheio de graves, onde eventualmente os vocais se distorcem ao extremo e se tornam gritos abafados e fatiados, e um orgasmo de chiados agudos por trás da batida no final. É como estar viajando a centenas de kilômetros por hora por um túnel escuro, fugindo de um perseguidor malévolo, a luz no final se aproximando cada vez mais, e de repente BOOM, saímos, a visão ofuscada pelo brilho de mil sóis, finalmente escapando com sucesso do perigo...

A mixagem e qualidade de áudio do trabalho todo é impecável, e recomendo escutar tudo por um headphone ou stereo de qualidade para perceber todos os detalhes dessa jornada, de preferência sem distrações.

Lopatin aqui misturou todos os estilos que foi aperfeiçoando de maneira meticulosa ao longo de sua discografia, e isso fez com que Garden of Delete possa parecer sem rumo em partes. Para alguém que amou tão energeticamente Bish Bosch, de Scott Walker, o desnorteamento pode até ser emocionante. Mas temo que algumas tracks não tiveram o bastante para me chamar a atenção e rumaram demais em direção ao desconhecido. SDFK poderia ter sido perfeita se não fosse apenas um interlúdio mal trabalhado. Eccojamc1 nos faz relembrar do trabalho de Daniel sob outro pseudônimo (Chuck Person), Eccojams Vol. 1, precursor do Vaporwave, mas também não passa de um interlúdio fora de lugar. Child of Rage me deu esperanças de ver influências das partes ambientes de Replica, mas não as explorou o bastante.

No final, com tão poucos defeitos e tanto conteúdo inesquecível, Garden of Delete se garante como forte candidato para álbum do ano na minha lista e passa muito próximo da perfeição. O esplendoroso jardim das lembranças há muito deletadas. Ora tão gélido, ora tão quente. É lindo. Ou então está ficando muito tarde e preciso ir dormir e parar de sonhar acordado olhando pro teto e ouvindo OPN.

Capa do álbum: 7/10


Um dragão pousado sobre uma pilha de ruínas. A arte é uma edição duma screenshot de um RPG de 1982, Dungeons of Daggorath, e representa muito bem o conceito do álbum. Jogos, músicas, filmes, há muito esquecidos. Nossos vestígios, revisitados e reutilizados para criar um cenário surreal surpreendente.  Porém, achei minimalista demais. Preferi as capas de Replica e de R Plus 7.

Análise das tracks:


1. Intro 5/10

Um vocal estendido e distorcido ao extremo, ao ponto de nem parecer uma voz num certo ponto. No final, se torna uma risada. Estranho.


2. Ezra 10/10

Um começo cheio de pausas inesperadas que me fizeram pensar que meu player tinha bugado. Samples vocais fascinantes acompanhados de pedaços avulsos de ritmos preenchem o espaço, sempre pausando e alternando entre silêncio e som. É como se Lopatin tivesse tido acesso apenas a minúsculos excertos de gravações de voz corrompidas e tivesse que remixá-las. Tão lindo. Depois de um tempo a música explode e uma miríade de bleeps e mais samples vazam para nossa nossa realidade. (Entendeu? Leak...) Intenso, sublime, alienígena. Quando voltamos a mais tranquilidade, um baixo muito nítido é tocado e complementa o ritmo, desviando um pouco do digital. Pianos, também. Uma justaposição deliciosa.

3. Eccojamc1 7/10

Interlúdio curto que remete ao trabalho de Lopatin em seu outro projeto: Chuck Person's Eccojams Vol. 1. Vaporwave agradável, mas não vejo Garden of Delete como um trabalho que necessite de interlúdios.


4. Sticky Drama 10/10

Os mais lindos vocais femininos eletrônicos que já ouvi. Distorcidos e cortados ao ponto de serem ininteligíveis, mas expressando tanta emoção que é difícil acreditar. Um ritmo  engajante e viciante com batidas fortíssimas. Chiados tomam conta do áudio para então sumirem e após uma breve pausa na intensidade, a track se torna algo que eu esperaria de um álbum de Venetian Snares ou Igorrr e descendemos num breakcore hipnotizante e intenso. Que graves suculentos! Depois mais uma parte com os vocais femininos e batidas mais tranquilas. Ouvimos aqui a primeira frase entendível, algo como “...this is wrong with the world! People start to disobey...” Quando voltamos ao breakcore, os vocais se distorcem e transformam-se em gritos e grunhidos inquietantes, enquanto o instrumental eleva-se rumo a um clímax inesquecível.


5. SDFK 8/10

Um ambiente denso e quase dark, com vocais soterrados aparecendo ao longo do tempo. De repente, uma batida frenética e energética de tambores, inesperadamente tribal, crescendo e expandindo... até um final súbito. Gostaria tanto que Daniel tivesse explorado aqui uma instrumentação estilo Fuck Buttons, repetição incessante e elevação de intensidade. Mas é apenas um interlúdio.

6. Mutant Standard 9/10

Batidas intensas aqui, e mais rápidas. Uma conversa distorcida entre um garoto e garota. Uma ambientação fascinante por trás do ritmo. Os samples de conversa me lembram vagamente de Music Has The Right to Children. Depois a track se torna mais brilhosa com chiados e pianos agudos. Uma bela progressão ao longo de seus 8 minutos, de uma batida grave quase tribal (combinando um pouco com o interlúdio anterior) a beeps eletrônicos agudos. Impossível não sentir a imensa energia transmitida pela velocidade que as batidas tomam perto do final. Sons quase líquidos adicionam uma certa humanidade ao digital. O orgânico e o artificial. Único defeito aqui foi uma maior falta de rumo em relação às tracks anteriores e um final meio broxante.

7. Child of Rage 8/10

Pedaços de uma entrevista estranha e uma melodia triste no fundo. Do que diabos isso se trata? Uma briga inocente entre crianças ou uma vida de abusos? “Why is your brother afraid of you?” “Cuz I hurt him so much...” Essa track mistura bem ambiente, numa estrutura quase de post rock, com partes mais animadas. Embora tenha amado o uso do ambiente denso, não vi nada muito interessante na batida principal, que parece vinda de um xilofone. Também é uma música que investe muito em devaneios. O final, no entanto, é tão impalpável que me fez imaginar como seria um álbum inteiro desse estilo.

8. Animals 10/10

Os vocais distorcidos e de alta frequência que já nos acostumamos aparecem aqui novamente, mas agora com uma certa tristeza desconcertante e intensa. É quase um um lamento. O instrumental complementa a atmosfera e, apesar de ligeiramente minimalista, faz seu papel com maestria. Piano e chiados, e no final o que soa como um violoncelo, culminam na track mais melancólica do álbum.

9. I Bite Through It 10/10

Kicks, bleeps e synths dançam num ritmo incessante e cheio de glitches, como uma falha num CD repetida e remixada, mudando de frequência em intervalos de tempo. Pequenos pedaços de uma interjeição distorcida aparecem para formar os vocais. A batida fica mais barulhenta e intensa, quase industrial, até que uma onda de chiados te atinge com toda força e um segmento de violão dedilhado começa. De repente, os vocais são amplificados imensamente, estourando ao longo do caminho. Até um riff de guitarra aparece, muito brevemente. Pedaços de memórias digitais esfarelando. Perfeito.

10. Freaky Eyes 10/10

Um ambiente lindo no começo, orgânico mas gélido. Então surge um elegante piano (ou órgão?) para criar o ritmo principal. Synths aparecem para crescer a atmosfera, bleeps criam um som cristalino e brilhoso, vocais distorcidos no fundo, distantes, tudo rumando a um iminente clímax que é interrompido bruscamente por um sample de música pop. O ritmo de anteriormente volta a seguir, porém mais vazio e distorcido, efeitos defeituosos fazem parecer que a música vem de um rádio perdendo o sinal. Os vocais abafados e digitalizados, a festa de glitches insanos que no final se transformam em sons de tubos de metal tilintando suavemente... tudo isso cria um desfecho absolutamente monumental. É como se tivessemos atingido o limite da realidade, onde todo o tempo e espaço estilhaçam e presenciamos o que existe além.

11. Lift 9/10

Uma batida digital rápida e oscilante em volume e abrasividade. Os vocais, fragmentos silábicos, esporadicamente surgem e somem. Ouvi um "That I..." em meio aos excertos. Guitarras se juntam inesperadamente ao ritmo. Os vocais ecoam e flutuam, como alucinações. A atmosfera que emana daqui é tão fascinante, tão de outro mundo. É impossível não sentir, simultaneamente, admiração e confusão ao ouvir essa música.


12. No Good 8/10

Vocais autotunados que me lembram de James Blake, sobre um ritmo relaxante e vagaroso, com fortes influências do vaporwave em algumas partes. Os imensos saw waves graves que invadem a melodia na metade da música, tão energéticos, deixam tudo mais intenso, mas sem perder a atmosfera central. Muito lindo, mas eu preferiria muito mais Freaky Eyes como o closer do álbum.

Nota final:

9,5/10

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